"Não canso de dizer: o ballet é a minha segunda pele".
sexta-feira, 18 de abril de 2008
Críticas publicadas
CECÍLIA KERCHE: A CRIAÇÃO Eliana Caminada Não resta a menor dúvida de que o nome e a bailarina Cecília Kerche dispensam elogios; sua dança é reconhecida demais, sua fama ultrapassou fronteiras e a coloca acima de opiniões que não passam disso: meras opiniões. Entretanto, não pude me furtar a falar sobre sua atuação no espetáculo "A Criação" de Uwe Scholz, levado à cena pelo Corpo de Baile do Theatro Municipal do Rio. O espetáculo impressiona assim que a cortina se abre e diante dos olhos do espectador surge o palco do Municipal totalmente aberto, com sua urdidura, suas varandas, seu vitral, suas "pernas", coxias, portas, janelões. Lindo, profundamente lindo porque... Ah, não sei explicar porque amo palco de grandes teatros totalmente despojados de seus recursos, de sua magia. Paradoxo: nessa hora é que se vê o quanto essa magia existe e o quanto é, ao mesmo tempo, real. A solução está longe de ser original; contudo, nunca envelhece. Foi exatamente assim que Oscar Araiz encenou Magnificat de Bach na primeira - e muito mais bela - versão montada para nós em 1974; lembro-me de que eu e Aldo Lotufo, com quem eu tinha o privilégio de dividir o palco, ficamos envolvidos pela atmosfera que emanava daquele lugar. Mas Uwe Scholz vai adiante, tem mais recursos e um vocabulário de infinitas possibilidades. Essa não é uma primeira impressão da obra desse coreógrafo que morreu tão moço. Neoclássico? Contemporâneo? Atual e ponto. Rótulos importam? Para que? Para quem? A companhia inteira trabalhando à vista do público é outra visão que amo sinceramente, ou seja, percebi que com aquela música divina e essa introdução a noite seria maravilhosa. E foi! Foi uma das grandes noites do Corpo de Baile, dessas que a gente pensa que nunca mais vai acontecer e milagrosamente acontece. Vieram os solistas - como temos bons bailarinos. Mais do que isso: o Corpo de Baile, quando bem aproveitado, deixa claro que está vivo, que tem garra e que tradição faz diferença. Quero sim, dizer com isso, que temos uma tradição, reconheçam ou não, e que ela precisa ser preservada, cultivada e objeto de orgulho. O espetáculo vai acontecendo, bonito, pura harmonia. Novo quadro. Uma bailarina começa a se movimentar. Eric, meu marido, me disse - ele nunca vê programa antes do espetáculo: "Eliana, é Cecília Kerche". Do Aurélio: Integrar (do lat. Integrate) V.t.d. 1. Tornar inteiro, completar, inteirar, integralizar... Creio que a própria palavra define a participação de Cecília em A Criação. Fiquei sensibilizada. Ali estava, integrada, ligada, re-ligada a seus companheiros uma das maiores bailarinas que o Brasil já produziu, um de seus maiores mitos. Generosa, emprestou seu brilho pessoal, sua experiência e seu carisma justamente quando o Corpo de Baile mais precisa dela. O momento do ballet é um privilégio e Cecília, distante de clássicos de repertório, se revelou mais do que grande bailarina: uma grande personalidade. Não sei o que ela mesma sente dançando A Criação. O que transmite? Também não sei dizer, as palavras têm seus limites. O que senti com clareza foi o que o peso de sua presença influenciou de tal modo a encenação que, quem sabe? entendi tudo o mais: a presença feliz da companhia dançando como tal, como um conjunto de artistas que ama aquela casa e a opção por aquela vida. Mais tarde, refletindo, pensei em coisas de bailarina mesmo. Será que os colegas de Cecília já pararam de olhar o óbvio, suas pernas e pés, e olharam para a beleza de seus braços e de suas mãos? Conselho não se dá, mas hoje estou contrariando o bom senso. Pessoal, olhem para cima para verem o fundamento que faz da bailarina Cecília o que ela é. Ou jamais entenderão porque nem todo bailarino com perna alta, pés lindos e giros fáceis desenvolvem carreira solo. Enquanto um bailarino não encontra a maturidade implícita no acabamento, personalidade e beleza de seus movimentos, movimentos entendidos pelos braços e pelas mãos, não pode considerar que ultrapassou o estágio de excelente aluno adiantado ou de grande promessa. E por incrível que pareça, há bailarinos que terminam sua vida de performers e não atingiram esse estágio maior, acima de marcas atléticas, imprescindíveis para festivais, quase acessórias quando o que está em jogo é o intérprete. Não por acaso, interpretar "A Morte do Cisne", que tem pas-de-bourré, primeiro passo que executamos na ponta, como passo básico, é tão absolutamente difícil; é uma obra-prima, na qual poucas bailarinas se consagram e quando conseguem, em geral, não estão muito jovens. Lembrei-me de Cecília este ano em Joinville, homenageada e integrante da banca de jurados de clássico, como eu, João Vlamir, Ismael Guiser e Tíndaro Silvano. Impressionou-me, então, sua preocupação em ser brasileira, em assumir orgulhosamente o papel de embaixatriz brasileira da dança; tocou-me percebê-la encantada com as lindas crianças preparadas exclusivamente por professores da sua terra; aprendi vendo-a orientar candidatos, transmitindo o que tem recebido de mestres consagrados e internacionais sem esquecer, por um momento sequer, de que é uma bailarina brasileira e de que foi assim que ela conquistou seu lugar no mundo. Inclusive na Rússia. Saí do Theatro com a velha sensação de felicidade tantas vezes sentida; com a convicção de que o Corpo de Baile sempre renascerá. Já o chamei de Phoenix e a mesma imagem me veio à cabeça outra vez. Veio-me a firme convicção de que precisava registrar esse momento do jeito que posso e que sei. Aqui está: Cecília Kerche, receba minha homenagem, não apenas por esse momento, mas pela sua trajetória de vida. Aos companheiros de profissão e amor à dança: parabéns e obrigada. Valeu!!!
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